Refugiados Em Elvas: Aspeto Histórico, Militar e Turístico
Texto de opinião por Moisés Lopes, Mestre em História Moderna e Contemporânea
O presente texto sobre a questão dos refugiados espanhóis em Elvas envolve várias componentes. Desde logo, destaco os factos históricos que marcaram a comunidade, a cidade e toda a região alentejana, com a entrada e movimentação de espanhóis neste espaço. Esta situação ocorreu no seguimento dos acontecimentos proporcionados pela Guerra Civil de Espanha, que fraturou o país em dois polos políticos que se distanciavam. Por um lado, um polo marcado pelos republicanos, que defendiam o governo de Madrid e, por outro, um polo caracterizado por um fervoroso nacionalismo, chefiado pelo general Francisco Franco. O general e a sua fação deram início, a 17 de julho de 1936, a uma revolução em Marrocos, que rapidamente chegou a Espanha. O carácter violento e sangrento da guerra levou a que muitos espanhóis apoiantes do governo vigente tivessem de fugir das suas casas e tentassem encontrar segurança noutro espaço [1]. Deste modo, quem vivia perto da fronteira com Portugal procurou o nosso país para fugir ao clima de medo, de coação e de extrema violência praticado pelos nacionalistas espanhóis. No caso de Elvas e da fronteira Elvas/Caia, a maioria das entradas remetem para habitantes da Extremadura, principalmente da cidade de Badajoz, pela sua proximidade.
No entanto, o desejo de segurança e liberdade em Portugal para os refugiados espanhóis foi efémero e interrompido logo na fronteira. António de Oliveira Salazar, precaveu-se desde o início do conflito armado para qualquer que fosse o final da guerra em Espanha. Como tal, tomou medidas e deu diretrizes importantes para que as autoridades fronteiriças não deixassem passar qualquer refugiado espanhol. Para o Presidente do Conselho, a vitória dos nacionalistas seria conveniente, até pelas parecenças ideológicas a Franco, dando desde o início do conflito todo o apoio aos nacionalistas. As fronteiras eram, por isso, um ponto sensível e que merecia todo o cuidado. O receio e a preocupação do Estado português passaram por controlar os refugiados republicanos nas fronteiras, uma vez que seria imperativo que estes não divulgassem e propagassem os seus ideais republicanos em Portugal, visto que poderiam pôr em causa Oliveira Salazar.
Apesar da clara preferência do Estado português, o exército não colaborou diretamente na guerra, apenas havendo alguns voluntários a combater junto dos nacionalistas. A intervenção militar de Portugal foi insignificante, procurando manter o normal funcionamento nas relações externas com as principais potências europeias, em particular com a Inglaterra, a sua mais antiga aliada. O apoio mais acentuado foi o de carácter financeiro, com a criação de linhas de crédito para comprar material de guerra, adquirido ou transitado em Portugal. No mesmo sentido, existiu também apoio logístico e de suporte à fação liderada por Franco [2], principalmente na circulação e na organização estratégica.
No que diz respeito às forças policiais e de segurança, é possível afirmar que estas tiveram um papel muito relevante, tanto no controlo fronteiriço como local. A Guarda Fiscal foi a principal força policial a prestar informações relativas a toda a zona de fronteira, cabendo-lhe a fiscalização da mesma a partir de julho de 1936. Esta autoridade era, igualmente, importante nos meios rurais, principalmente para manter a segurança da população. Não obstante de toda esta vigilância, a quantidade de oficiais para fazer um controlo adequado das zonas fronteiriças era considerada insuficiente pelos postos de comando locais.
Em Elvas, tanto o Forte de Nossa Senhora da Graça como a Praça de Touros receberam refugiados republicanos. Ao entrarem em Portugal, estes eram detidos pelas forças policiais e remetidos para locais onde não pudessem entrar em contacto com a população residente. A Praça de Touros foi utilizada para aprisionar “800 milicianos vermelhos, 2 majores e 4 capitães” [3]. No Forte da Graça, em julho, estavam 75 republicanos espanhóis [3] que tentaram entrar em Portugal. A estes juntaram-se, no dia 24 de setembro de 1936, 136 refugiados espanhóis [4]. O número de refugiados em Elvas, considerando os documentos oficiais disponibilizados, durante o ano de 1936 superou os 1000 indivíduos, não contabilizando as mulheres e crianças que também entravam oriundos de Espanha [5].
O quotidiano das populações fronteiriças, e em particular das populações de Elvas, alterou-se profundamente com a Guerra Civil de Espanha. Os relatos, em Elvas e no restante distrito de Portalegre, mostram “uma efervescência política e social” bastante preocupante. Esta situação é comprovada pelo “uso ostensivo de um pequeno emblema (um escudo), por parte da maioria das pessoas ainda ligadas aos antigos partidos políticos batidos pela Revolução de 1926, onde avulta considerável número de funcionários públicos” [6], o que levou à mobilização e reforço das forças policiais nos locais fronteiriços [7]. Em Elvas, a falta de marcadores naturais fez com que os laços fronteiriços fossem criados entre portugueses e espanhóis, algo que era muito comum em diversas comunidades fronteiriças de norte a sul do país. Esta situação levou a um espaço de contacto entre as duas populações, que fez com que se tornasse complicado marcar limites exatos onde decorria a linha de nacionalidade, visto que desde sempre foi comum a partilha, a convivência e o espírito de solidariedade raiana. Não é, desse modo, surpreendente o facto dos espanhóis de Badajoz e de outras regiões circundantes terem procurado refúgio em Elvas durante o conflito espanhol e os habitantes de Elvas tenham, dentro do possível, ajudado essas pessoas a sobreviver [8], mesmo que de forma ilegal e contrariando as orientações e o desejo do governo português.
Em relação ao aspeto militar, a cidade de Elvas possui infraestruturas que são conhecidas e que são de um património riquíssimo. O Forte de Nossa Senhora da Graça, é um exemplo inequívoco de uma arquitetura militar de excelência. O Forte é uma construção da segunda metade do século XVIII, e está localizado no Monte da Graça. Em termos de estrutura, caracteriza-se por uma planta quadrangular sendo completada com baluartes pentagonais nos vértices, tornando-se, por isso, um ponto estratégico de enorme relevância. O Forte serviu, durante várias décadas, como prisão militar. Como anteriormente foi referido, albergou um número significativo de refugiados espanhóis durante a Guerra Civil de Espanha (1936-1939), sobrelotando este espaço. Segundo o capitão Manuel Rijo, comandante do depósito neste período, era imperial existir um rigoroso isolamento, visto que neste também se encontravam diversos prisioneiros portugueses [9].
A antiga Praça de Touros de Elvas, não sendo um edifício com um propósito militar, transformou-se na década de 1930 numa ampla prisão e serviu como um espaço de aprisionamento de refugiados [10]. Concomitantemente, foi uma estrutura que permitiu às forças policiais ter mais condições de controlo sobre os refugiados espanhóis, visto ser um recinto espaçoso permitia concentrar uma quantidade muito significativa de republicanos espanhóis. Estes eram, igualmente, designados de “vermelhos”, emigrados políticos ou refugiados, sendo estas três as principais denominações utilizadas pela Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE) e pela Guarda Fiscal para se referir aos que procuravam refúgio em Portugal, durante o conflito em Espanha.
O Castelo de Elvas, construído no século XIII, teve uma importante ação militar durante a Guerra da Restauração (século XVII). Pela proximidade geográfica a Badajoz, o Castelo foi um relevante argumento defensivo, principalmente no cerco espanhol. À semelhança do Forte de Nossa Senhora da Graça, o Castelo de Elvas foi visto, principalmente na Idade Média e Moderna, como um dos primeiros locais de defesa do reino português devido à sua fortificação. Durante a Guerra Civil de Espanha não se encontram relatos da forma como o Castelo foi utilizado. Desta forma, não é possível afirmar com exatidão que utilidade possuiu este espaço neste período conturbado.
A última componente que se pretende desenvolver neste texto relaciona-se com o aspeto turístico, que tem uma enorme importância para a cidade de Elvas. A questão militar é da maior relevância para a cidade, não apenas por uma vertente histórica, com o relato de diversos acontecimentos, mas também pelo crescimento de património que vem associada a este fenómeno. Uma das características de relevo em Elvas foi a capacidade de transformar locais históricos e elementos militares em atratividades turísticas. O Forte da Graça é um exemplo de transformação de uma prisão militar num ponto turístico, que recebe milhares de turistas por ano. Os visitantes procuram, por um lado, conhecer a história do monumento e por outro conhecer a riqueza cultural que possui. Em alguns casos, o objetivo passa, de igual modo, por visitar o local onde alguns familiares estiveram confinados remetendo, neste caso, para a questão da memória e identidade, seja ela familiar ou coletiva.
O castelo enquadra-se, igualmente, num regime de valorização da cidade devido à extensa riqueza que está avaliado. A riqueza, nesta situação, vai além do valor patrimonial que representa, dado que adiciona uma vertente histórica vasta. Em concomitância, devido à posição natural que ocupa, é visto como motivo de atração e curiosidade de quem visita a cidade raiana. Relativamente à antiga Praça de Touros, esta foi destruída, sendo novamente construída, no mesmo espaço, uma outra, inaugurada em 2006. Além da modernidade, caracteriza-se por ser um espaço multiusos, com a possibilidade de realização de diversos eventos e atrações públicas. É, como tal, um local de atração turística de relevo. O Museu Militar foi inaugurado em 2009, devido à restruturação do exército em 2006, que resultou na extinção do Regimento de Infantaria nº8, sendo a última unidade militar a ocupar as instalações. Neste museu é possível observar parte do acervo museológico e patrimonial do Exército Português e há o objetivo de valorizar a componente militar, principalmente com a exposição do património histórico-militar à sua guarda. É um dos pontos de atração turística na cidade e que mostra elementos históricos e militares de elevado valor patrimonial.
Outra característica muito importante da cidade de Elvas é a sua localização. A cidade encontra-se no eixo Lisboa-Madrid e muito perto de Badajoz, ocupando, por isso, uma posição central. A centralidade de Elvas não é algo que seja cingido aos séculos XX e XXI, estando também presente em séculos anteriores. Quando Filipe II de Espanha saiu de Madrid para ser aclamado nas Cortes de Tomar em 1581, passou precisamente em Elvas, permanecendo aí o inverno de 1580 para 1581. Esta é, portanto, uma rota muito importante na ligação Portugal/Espanha, tornando-se um destino de paragem para vários turistas.
Uma peculiar particularidade que se pode destacar era a população residente na cidade e zona envolvente. Segundo o censo de 1930, década da Guerra Civil de Espanha, residiam em Elvas 24.711 pessoas [11]. Nos dias de hoje, o número de habitantes é muito idêntico ao registado há 90 anos, revelando uma homogeneidade populacional ao longo de um século, com uma variação muito reduzida de percentagem. Este é uma ideia importante, uma vez que revela que não terá ocorrido nenhuma massiva entrada ou saída de habitantes, o que demonstra uma identidade local e familiar muito característica.
Em suma, o tema dos refugiados espanhóis teve um impacto significativo tanto na comunidade residente em Elvas, como também da população espanhola, que viu a fuga do país como único meio de sobrevivência. Os laços foram, ao longo do tempo, criados entre ambas as comunidades e este aspeto ganha cada vez mais importância à medida que a atividade turística vai adquirindo um espaço mais preponderante e relevante na sociedade dos nossos dias. A presença de monumentos e espaços culturais em Elvas, como são exemplos o Forte Nossa Senhora da Graça, o Castelo, a nova Praça de Touros, o Museu Militar, o Aqueduto da Amoreira ou a Biblioteca Municipal, mostram a riqueza histórica da cidade. Para esta valorização e dinamização do centro urbano, também muito contribuiu a vertente militar, tanto a nível de património (principalmente a arquitetura militar) como a nível de história. A cidade de Elvas pode então, pelo conjunto patrimonial que possui, ser encarada com um polo muito relevante de atração turística e cultural.
Referências Bibliográficas:
[1] Sobre os atos de violência, principalmente em Badajoz, destaco os relatos do jornalista português Mário Neves e do embaixador de Portugal em Espanha, Pedro Teotónio Pereira, que escreveram sobre a barbárie praticada nesta cidade espanhola. Ainda neste âmbito menciono o historiador espanhol José Luis Casalá.
Remeto, assim, para as seguintes obras:
NEVES, Mário, A Chacina de Badajoz. Relato de uma testemunha de um dos episódios mais trágicos da Guerra Civil de Espanha, 1ª edição, Lisboa, Edições «O Jornal», 1985;
COMISSÃO DO LIVRO NEGRO SOBRE O REGIME FASCISTA Correspondência de Pedro Teotónio Pereira para Oliveira Salazar. Vol. I (1931-1939), Mem Martins, GráficaEuropam, 1987;
CASALÁ, José Luis Gutiérrez, La Guerra civil en la província de Badajoz. Represión Republicano- Franquista, Badajoz, Universitas editorial, 2003.
[2] OLIVEIRA, César, Salazar e a Guerra Civil de Espanha, Lisboa, Edições “O Jornal”, 1987, p.142.
[3] Jornal Novidades, 18 de Agosto de 1936.
[4] Arquivo Histórico-Militar, 1ª Divisão, 38ª Secção, Caixa 38, nº10. Carta do Governo Militar de Elvas ao Chefe do Estado Maior da 4ª região militar em Évora, datado de 28 de Setembro de 1936.
[5] Arquivo Histórico-Militar, 1ª Divisão, 38ª Secção, Caixa 38, nº8. Carta do Governo Militar de Elvas ao Chefe do Estado Maior da 4ª região militar em Évora, datado de 28 de Setembro de 1936.
[6] Arquivo Nacional Torre do Tombo, Ministério do Interior, Gabinete do Ministro, M.492. Governo Civil de Portalegre, Relatório do mês de Julho de 1937 dirigido ao Ministro do Interior.
[7] Arquivo Nacional Torre do Tombo, Ministério do Interior, Polícia de Vigilância e Defesa do Estado Novo, Relatório (1932-1938), p.33.
[8] OLIVEIRA, César, op. cit., pp.158-159.
[9] CANDEIAS, Maria Fernanda Sande, O Alentejo e a Guerra Civil de Espanha. Vigilância e Fiscalização das Povoações Fronteiriças, Lisboa, Texto Policopiado, Dissertação Mestrado, 1997, p. 86.
[10] Como já anteriormente citado, a notícia pública da presença de espanhóis na Praça de Touros de Elvas é datada de 18 de agosto de 1936, pelo Jornal Novidades, que fazia algumas referências à Guerra Civil de Espanha diariamente. Contudo, existem também no Arquivo Histórico-Militar documentação que indica o aprisionamento neste espaço.
[11] Direcção Geral de Estatística, Censo da população de Portugal. Dezembro de 1930, Lisboa, Imprensa Nacional, 1933, pp.6-14.